segunda-feira, 23 de outubro de 2006

Um domingo. Um pensamento. Um conto.

Divã

Ela estava esparramada sobre o sofá, que parecia ter encurtado um pouco, dado que seus pés não costumavam ficar para fora do braço. A televisão já não era mais a mesma, embora estivesse sobre aquele mesmo móvel puído onde ela costumava guardar suas bonecas "Moranguinho". Hoje as gavetas estavam ocupadas com papéis, quinquilharias, alguns carrinhos de última geração que seu sobrinho havia esquecido na casa dos "abuelos".

Olhava distraída para o programa de televisão, enquanto os outros faziam qualquer coisa: os outros eram seus irmãos, sua mãe, seu pai. Nomenclaturas essas há muito substituídas: com a chegada da nova geração, a irmã passara a ser a mãe do nenê, seu irmão era o tio do nenê, sua mãe a "abuela" do nenê, seu pai o "abuelo" do nenê, o único da casa que tinha o poder mágico de manusear a faca grande que cortava a carne de churrasco pro nenê. Engraçado pensar nisso. Ela já não era mais a caçulinha, seu nome não era mais diminutivo, já não recebia xingões por não ter arrumado seu quarto e por ter deixado uma peça do uniforme do colégio espalhada por cada cômodo da casa. Ao deixar-se levar por tais pensamentos, deteve-se a observar cada um que caminhava frenético em torno da mesa de jantar. E descansou os olhos sobre a figura do pai. Ou abuelo, melhor dizendo.

Ao ver a barba e cabelos esbranquiçados, viu em si mesma que havia deixado há muito de usar duas tranças repartindo a cabeleira ao meio. Viu também as costas curvas daquele homem que tanto a embalara, e percebeu que ela já tinha corpo, sabia como usá-lo, e já não somente para correr de bicicleta. Percebeu ainda as roupas puídas dele, como que paradas no tempo, e observou que a ela não eram mais imputadas saias abaixo dos joelhos ou roupas que não escandalizassem os vizinhos. Não que ela usasse roupas desse tipo, mas desvencilhar-se da proibição era algo libertador.

Quando pronunciou em pensamentos tal palavra, “libertador”, estancou-se. Ela tinha liberdade, ia e vinha, não dava mais satisfação de seus passos. Entretanto, não conseguia repudiar um paradoxal desejo de se sentir aprisionada à infância novamente. Estar presa era uma forma de também aprisionar a todos naqueles instantes passados, evitando assim despedidas, que viriam certas, no futuro. Queria estar presa pelo relógio que batia às oito da noite e lhe exigia que se recolhesse à casa; presa pelo dever de mostrar um belo boletim ao pai; presa pelo imposição de arrumar a cama antes de ir à casa de sua amiga brincar de barbie; presa por esperar a autorização antes de sair à primeira festa de sua vida.

Foi emergida de seus devaneios no exato momento em que seu sobrinho a puxava pela mão e dizia: “Sai daí, dinda, quelo deitá”. Ela levantou-se e deixou-o ali. Foi quando viu que a criança cabia tão bem naquele sofá, seus pezinhos estavam tão longe do braço... Mudanças haviam brotado dentro dela e nasciam ainda novas transformações. E acabou concluindo que o sofá em nada havia encurtado.

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